João poderia falar menos.
Adelaide repetia esta frase anterior no seu pensar irritadamente.
Ela era dessas moças caladas, quietas, que não questionam as coisas e sim, a vida. Não questionam as pessoas, e sim, a vida. Não questionam os mandados dos pais, irmãos, tios e mais velhos. Dentro da casca domesticável e controlada, ela tinha muitas perguntas... muitas chateações acumuladas, muitas vontades de corridas pelo mundo afora, de sumir, de cachoeira.
Eram desejos demais para ela. E tudo vinha numa só jorrada de pensares, em comunhão sucinta com a queda agonizante para a sua realidade - de fazedora - e então, eram todos os pensamentos expulsos, pois não lhe cabiam, eram todos empurrados pro fundo da cachola mental, e eis que este espaço lotava de imaginação e tudo se explodia nova e repentinamente na sua cabeça. Dor de cabeça!
João não parava de falar.
E bem de um mundo longínquo era escutada a voz de João. Ele sentado e chupando laranjas aos bagaços numa mesa. Ela varrendo o chão de debaixo da mesa. Nem sequer uma sílaba, palavra, oração. Adelaide não conseguia se concentrar em entender, por mais que não quisesse.
Ela e seu mundo caminhavam pela casa, em silêncio, num ruído interno que a ninguém era descortinado. Uma terrinha tão somente dela que a ela possuía todo o reino e majestade, toda a sabedoria da vida mansa e alegórica de descanso eterno, de montar cavalos e domar as cercanias.
O seu mais secreto reinado era a cachoeira Castelinho, que banhava sua vida e suas tardes escapulidas de menina e brincadeiras, sem anúncios prévios de pratos sujos, camas desarrumadas, almoços por fazer, hortas para molhar, baldes para carregar. Tudo o mais era desconhecido, perdido, Castelinho lhe era imponente por ser o seu caminho sem agruras, seu destino ao final sabido e que a ela pertencia de tamanhas idas e vindas por entre lamas e cantos naturais. Neste percurso ela nunca tinha sido turista e enfrentava destemida as conseqüências que lhe abatiam calada.
João parou de falar!
Lá se foi João ao chão com uma paulada na cabeça, um cabo de vassoura bateu-lhe certeiramente onde fica o couro cabeludo. Ela devorou o silêncio. Saciada. Não tinham mais palavras voando na cozinha, palavras insuportáveis de chateação. Nem pena, nem dó, nem poeira, nem lar, nem se importar.
Andando com a mais pura das consciências Adelaide atravessou a porta da cozinha, encaminhou-se distraidamente à porta da casa e buscou o seu caminho entre troncos altos, verdes e animais, achou sem demora o bosque de pedras em rumo à trajetória do seu encanto, do seu reino, e foi se despindo ingenuamente para este encontro.
João acordou desnorteado alguma hora que mais não importa, lembrou, sentiu raiva da menina e até hoje, tempos depois, a espera para uma bronca recheada de surra cruciais. Numa tarde desesperada de felicidade, a loucura agarrou Adelaide para nunca mais soltar. Uma loucura tão normal quanto pode ser água e sede. E o fundo da cachoeira não respondeu ás perguntas da família, dos próximos, tão distantes a ela.
Hoje, eles vivem em memórias e arrependimentos. Adelaide, em algum espaço e tempo talvez bem inverso do nosso. Ao contrário dos seus afazeres domésticos desconsideráveis e substituídos por entre povos encantados e bailes de saias e espumas. Sumiu de várias vidas, mas encontrou a sua. Mostra-se da mais bela forma, com o sorriso mais brilhante do que o ouro que a cerca. Ela é rica em tesouros dourados da mais alta categoria da simplicidade. Ela cumprimenta a todos que lhe reverenciam com esmero, dança entre seu povo, fala com todos pelas praças, ajuda a quem pode, conversa com quem precisa.
Eu a vi esses dias quando distraidamente fui levado a ter contigo uma consideração de grandeza e sabedoria. O ventre de Adelaide é materno e carrega todos que lhe são parte dela. Ela continua forte e dinâmica, viva. E com a vassoura que antes lhe pertencia, ela limpa chãos de vida e futuro, bocas muito sujas de idiotias que nem toda a água consegue lavar. Com o cabo, ela desconstrói tormentos, expulsa tristezas e liberta sonhos.